Lenda das Bodas do Cemitério


Era uma vez um fidalgo, dos mais nobres das terras que se estendem, num vale fértil, entre altas montanhas, banhadas por um rio, o Vez, pequeno no caudal, é certo, mas de margens graciosas e elegante no percurso até às águas do Lima.

Chamava-se D. Soeiro e era alcaide do castelo de Tora, de perfil aguerrido, eriçado de ameias, erguido sobre espessas rocas.

Enviuvara, há bem pouco, de D. Aldonça, aparecida morta subitamente, tão nova ainda e tão bela.

Ninguém conheceu a dimensão do desgosto do alcaide, nem ninguém lhe vira as lágrimas de dor, pois, por alguns dias, permaneceu encerrado no seu Paço do Vale, sem conviver com amigos ou parentes.

Parecia, todavia, misterioso, a muitos, o triste desaparecimento da dama, coincidindo com o afastamento de uma das suas aias, Dulce, a quem D. Soeiro dirigia, muita vez, ora um galanteio, ora um sorriso cúmplice.

Por isso, nos castelos e solares das redondezas, se murmurava, aliás sem existência de probas, que o marido se vingara na esposa, com veneno ou punhal, por ela haver descoberto o seu amor adúltero e o haver interrompido com a expulsão de Dulce.

Passado o tempo de luto, D. Soeiro regressou às suas funções de alcaide do castelo de Tora, próximo da fronteira, vigia e defesa do solo português.

Ia ele, num entardecer doce, vulgar por aquelas bandas, a caminho do castelo, quando ao passar junto do cemitério onde jazia D. Aldonça, avistou um vulto de mulher, cuja riqueza do trajo mostrava ser alguém de elevada estirpe.

Trazia o rosto pudicamente oculto por um véu de tecido leve.

D. Soeiro, encantado com aquela aparição, não resistiu em rogar-lhe que se mostrasse aos seus olhos, despojada de ocultações.

Ela obedeceu.

E D. Soeiro pôde, então, admirar melhor essa mulher, muito jovem e muito formosa.

Solícito, indagou-lhe se necessitava de auxílio; de companhia até casa, pois a noite avançava e cresciam os perigos de uma dama, como ela, se aventurar, sozinha, por esses ermos.

E, enquanto dizia tais palavras, o alcaide cada vez mais se sentia dominado pela sedução daquela mulher.

Num ímpeto apaixonado, tentou mesmo tocá-la, mas parecia que as suas mãos unicamente prendiam o sopro do vento.

Tomou-lhe a mão, mas sentiu-lha de gelo e como desprovida de carne.

Dir-se-ia haver palpado, apenas, os ossos de um esqueleto!

Todavia, não deixou de lhe confessar um amor eterno, pois pensava que lhe era impossível, a partir do instante em que avistara aquela dama, continuar a viver de coração tranquilo e solitário.

A visão sorriu enigmaticamente.

Depois, exigiu do alcaide que jurasse a eternidade desse amor, no recinto sagrado do cemitério.

E ambos se dirigiram para lá.

Mas, quando D. Soeiro transpôs o portão da mansão dos mortos, o sino da capela do solar do Vale começou a tanger, cadenciado.

Espantou-se o alcaide com aquele dobre, pois havia proibido aos seus criados, após o falecimento de D. Aldonça, de fazer tocar o sino da capela.

Então, ao som das badaladas, D. Soeiro viu-se envolvido pelos braços da estranha dama e, mudo de assombro, ouviu-se a confissão:

Ela era o cadáver de D. Aldonça, traída e assassinada pelo marido, a vingar-se, naquele encontro, do seu sofrimento e da sua morte violenta.

E, à medida que fazia esta revelação, sem deixar de abraçar D. Soeiro, ia-se transformando, lenta, lentamente, num esqueleto apavorante.

Um grito imenso, arrepiante, soltou-se da boca escancarada do alcaide.

A Lua já nascera no céu, pálida e misteriosa.

Na manhã seguinte, o coveiro foi descobrir D. Soeiro, morto e tombado sobre o sepulcro da esposa.

Então, o povo e a fidalguia daquelas paragens, lamentando-lhe a morte, arrependiam-se de haver duvidado da fidelidade do alcaide, afinal, tão apaixonado por D. Aldonça.

E nunca chegaram a conhecer a verdade.

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