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Lenda do Rio Neiva


Era uma vez um rei chamado Oural, a quem uma terrível feiticeira, invejosa do seu poderio, por todas as terras de entre Lima e Cávado, transformou e, com ele, a bondosa rainha, numa serra escalavrada e nua.

Os dois infelizes soberanos tiveram, ali, um filho, nascido do ventre materno em forma de fonte, num saltitar alegre e palreiro, de jorro de água, sobre pedras, ervagens e lama.

Sabendo-o assim, saudável e puro, o rei Oural quis vê-lo crescer, fortalecer, livrar-se das imagens severas das penedias e correr, livre, pelo vale que se lhe rasgava aos pés.

Depois de o batizarem com o nome de Neiva, tão semelhante a Névoa, àquele espesso manto cinzento que lhes envolvia o corpo friorento pelos invernos rigorosos, os pais disseram-lhe um comovido adeus, com as lágrimas a congelarem, brancas, nos peitos duros, como manchas brilhantes de geada.

Também o Neiva se despediu dos pais, mas numa pressa de jovem ansioso por descobrir novos lugares, sonhando aventuras no percurso até à imensidão do mar, onde iria mergulhar-se e confundir-se.

Descia, então, vertiginoso, em pequenas cascatas e açudes, o dorso áspero da serra e, ao vê-lo, maravilhadas com a sua beleza, as fontes precipitavam-se, vindas de outros montes próximos, como os de Fojo Lobal, onde vagueava o lobo carniceiro, e de outros locais, como Arêfe, Carvoeiro e Fragoso, para o saudarem, para se lhe juntarem, para lhe aumentarem o caudal.

Ufanava-se já de um afluente esperto, o Nevoínho.

E lá ia seguindo o seu caminho no vale ameno, mais crescido e torrencial, com a voz que fora, apenas, um chilreio de passarinho, a engrossar, a infundir respeito a quem, homens e animais, o avistava das margens, pesado das chuvadas.

E era com respeito, de facto, que os animais e os homens se debruçavam para o seu leito, dessedentando-se em águas tão límpidas.

Ladeavam-no, curvando-se sobre ele, os ramos verdes e floridos dos salgueiros, dos ameeiros, dos carvalhos, numa saudação grata que o vento ajudava a prestar-lhe, felizes de sentirem a humidade vivificante a penetrar-lhes as raízes, vinda daquele rio generoso.

E o Neiva sentia a palpitar-lhe, nas entranhas, cardumes de peixes de prata que o agitavam em breves ondas de prazer.

E o Neiva escutava, pelos ares que o dosselavam, um frémito de penas, um adejo de asas leves, da passarada gorjeante, de melros e rouxinóis.

Desde Gondinhaços, aconchegada ao rés do berço, que as casas rústicas, os grandes campos de lavoira, queriam tê-lo como espelho, a refletirem-lhe a brancura da cal e a fertilidade pujante.

Também as azenhas beneficiavam da frescura e rapidez das suas águas, com as grandes rodas num giro constante, a prometer a bênção da farinha-e do pão.

O luar inundava-o de doçura.

Os raios de Sol salpicavam-no de oiro.

Por fim, o Neiva chegou à largueza da foz, alagando rochedos vestidos de limos e praias de areias claras.

E viu o mar!

Com que orgulho o penetrou, se alargou por ele, se espreguiçou no sal das suas vagas altas, geladas, num arrepio salutar!

Com que orgulho o recebeu aquele mar profundo e rouco, sempre inquieto, sentindo-se maior e mais brando, na meiguice de acariciar de espuma o corpo fino dos areais, mostrando-se menos perigoso no oscilar do barco de pesca, no arremessar à costa as grossas tiras castanhas e oleosas do sargaço fertilizante.

E o Neiva, súbito, reconheceu que era ele a alma viril de seu pai, prisioneira da maldade de um feitiço, de novo a fecundar de abundância e a fazer progredir os seus antigos domínios, e a bondade da sua mãe a encher de beleza a paisagem e de amor o coração da terra.

E, tal como Deus, no final de cada dia criador do Universo, viu que tudo isto era bom.

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