Skip to main content

Lenda A Flor dos Montes


Foi em Venade que tudo isto aconteceu. Lá, existe um alto penedo de estranha configuração, que logo atrai o olhar de quem por ali passa descuidado. Porém a gente da terra, ao senti-lo debruçado sobre o seu caminho, volta logo a cabeça, com receio de o encarar. O motivo que deu origem a esse estado de alma (o medo não é mais do que um estado de alma) foi esta lenda que vou contar, tal como me foi contada.
É linda, a Primavera no Minho. Os campos ficam mais verdes, mais viçosos. As flores desabrocham pelos montes, à beira das estradas, junto aos balcões das casas garridas. E foi em plena Primavera que isto aconteceu. 
Maria Clara saíra com o gado para o campo. Mas não se demorara tanto como era seu costume. Voltara mais cedo. A mãe estranhou o facto, ao vê-la entrar em casa. E indagou: 
— Já de volta? 
A rapariga respondeu, desembaraçada: 
— É verdade, minha mãe. Também… o Sol já lá vai. 
— E o gado? 
— Está acomodado. É sempre a primeira coisa que faço antes de entrar em casa. 
E tentando dar um tom indiferente à pergunta: 
— Viu o Zé? 
A mãe de Maria Clara parou de lidar. Olhou a filha de frente. Parecia zangada. 
— O Zé... O Zé... Então foi por causa dele que voltaste mais cedo?... Pois não me fales nele! 
Maria Clara assustou-se. 
— Porquê? 
Veio pronta, a resposta: 
— Porque essa velha bruxa qu’inda é parente dele anda p’raí a espalhar que ele vai ser um desgraçado contigo! 
Maria Clara embespinhou-se. 
— Desgraçado comigo? Pois tomara muitos o lugar dele! 
— Talvez. Mas o que é certo é que as bocas danadas já têm que fazer! 
— E porquê? 
— Olha, filha, porque somos muito pobres e não temos um braço de homem para nos defender. Essa é que é essa! 
Maria Clara estava corada de indignação. Mas quis fingir indiferença. 
— Ora, mãe, deixe-as lá falar! O que lhes rói é ele ter alguma coisinha de seu e eu só ter as pobres ovelhas! Que se amofinem, porque eu bem me importo com elas! Gosto do Zé, e pronto! Queira ele... e havemos de casar! 
Do lado de fora soou uma gargalhada. E uma voz bem timbrada fez-se ouvir: 
— Com que então, andas para aí a falar do Zé, alto e bom som... 
Maria Clara, apanhada de surpresa pelo namorado, resolveu levar o caso para a brincadeira. 
— Eu falo alto... e tu escutas às portas! Com que então... ouviste tudo? 
— Ouvi que gostavas de mim e isso soou-me como música na igreja! 
Maria Clara voltou a corar de alegria. Gracejou: 
— Vê, mãe, como ele fala? É assim, com estas palavrinhas bonitas, que ele me apanha! 
O rapaz olhou-a, prazenteiro: 
— Também tu és bonita, cachopa! Bem bonita! 
Ela encarou-o, quase séria. Indagou: 
— Olha lá, Zé... O que vale mais? Uma cara bonita, ou dinheiro na arca?... 
O jovem enamorado riu, antes de responder: 
— Conforme, rapariga. Para mim prefiro uma cara bonita e um bom coração, à arca mais recheada. Mas olha que nem todos pensam assim... 
Maria Clara atalhou logo, furiosa: 
— Por exemplo: a velha bruxa qu’inda é tua tia... diz que és mal empregado em mim! 
Ele pegou-lhe na mão, tentando acalmá-la. Sorria para temperar a borrasca que se anunciava. 
— Não te zangues, cachopa! É natural que a minha tia pense assim! É de outros tempos. Gosta de mim... 
— E eu, não gosto? 
— Sim... mas de outra maneira! 
— E que pretende que faças? 
— Só farei aquilo que entender... 
— Mas entretanto ela continua a falar… e as outras a seguirem-lhe o exemplo! 
Ele encolheu os ombros. 
— Olha! Qualquer dia iremos os dois à igreja, e toda a má língua acabará. 
Maria Clara ficou suspensa. Quase a medo, perguntou: 
— Qualquer... dia? 
Ele sorriu-lhe. 
— Sim. E muito breve! Ainda antes do dia do Senhor! Iremos os dois à sacristia e falaremos ao senhor Prior. 
Maria Clara voltou a corar. 
— Que lhe vais dizer? Tenho tanta vergonha dele... 
O rapaz olhou a sua bem-amada bem nos olhos, como a buscar inspiração. E respondeu, fitando-a sempre: 
— Direi assim: Senhor Prior! Quero arreceber-me com esta cachopa, que é mesmo uma flor dos montes! 
Maria Clara não sorriu. Estava quase a chorar de alegria. Voltou-se para a mãe, com voz trémula pela emoção. 
— Vossemecê ouviu?... Como o Zé sabe falar bem! 
A mãe de Maria Clara sorriu, enleada. Lá longe, na torre da igreja, soaram as ave-marias. A tarde declinava, num manto de luz suave... 
Dias depois, mais feliz do que nunca, Flor dos Montes — como os rapazes já chamavam a Maria Clara — subiu a serra com o gado. 
Era uma tarefa diária. Estava só. A água da fonte corria de mansinho, como em segredo de amor. E a jovem sonhava, olhando, lá em cima, o penedo — esquecida até das histórias que dele se contavam. 
De súbito pareceu a Maria Clara que o penedo se cobria de uma luz doirada. Levantou-se, então, num sobressalto, acordadas em si as histórias de antanho. E foi precisamente nesse instante que uma jovem esplendorosamente bela começou a surgir desse penedo, que se abria vagarosamente! 
Quase sem voz, tão grande era a emoção, Maria Clara murmurou: 
— Valha-me Nossa Senhora! Tanto oiro! 
Deu alguns passos em frente, mas estacou, receosa. 
Uma voz bonita falou-lhe então: 
— Não temas... Aproxima-te. 
Clara tartamudeou: 
— Quem... sois?... 
A jovem, envolta em fumo e luz, pareceu surpreendida: 
— O quê? Nunca ouviste falar em mim? 
— Em vós? 
— Sim. Ou pelo menos… neste penedo... 
Maria Clara teve uma revelação. Ficou pálida de medo, e perguntou: 
— Sois... a moura encantada? 
— Sou, sim. E posso fazer de ti a rapariga mais rica e feliz de todas estas terras. Basta que me oiças. 
— Estou a ouvir-vos... 
— E prometes fazer tudo quanto te pedir, sem falares a ninguém no que acaba de acontecer? 
— Se for coisa simples, farei! 
— Sim, é simples. Tens fermento da última cozedura de pão? 
— Tenho, sim. A minha mãe guarda sempre o fermento. 
— Neste momento, onde está a tua mãe? 
— No rio, a lavar. 
— Pois tem de ser agora mesmo! Vai a casa e traz-me o fermento. Eu tomarei conta do gado. 
— Só isso? 
— Só. Mas não digas a ninguém o que vais fazer, nem que me viste, entendes? Se cumprires a tua promessa, serás tão rica, que ninguém neste país te igualará! 
— Por que fazeis isso? 
— Porque ficarei livre! 
Maria Clara ficou um instante pensativa. Depois afirmou, convicta: 
— Prometo! Prometo tudo isso! 
E arquejando de emoção: 
— Que bom! Que bom vai ser! Tomai conta do meu rebanho. Eu volto já! 
Correndo de pedra em pedra, Flor dos Montes parecia uma andorinha, tão leve e contente se mostrava. De súbito, alguém viu-a passar e gritou-lhe: 
— Eh, rapariga! Que aconteceu para ires correndo assim?... Não ouves? Pareces uma tonta, cachopa! 
Ofegante, Maria Clara parou. Vendo a tia do seu namorado — aquela que tão más ausências fazia dela — gritou-lhe: 
— Que me quer, sua bruxa? 
A velha ficou varada. Nunca Maria Clara lhe falara assim. Teve um acesso de raiva, e exclamou: 
— Bruxa, eu? Olha a sem vintém, e ainda por cima malcriada! 
Maria Clara teve um riso nervoso. 
— Sem vintém? Isso é o que vossemecê pensa! 
E com orgulho súbito, remoendo vinganças: 
— Serei a mais rica de tudo isto em redor! 
A velha abriu os olhos num espanto. Que loucuras proferia a namorada do seu sobrinho! Meneou a cabeça, desgostosa. 
— Não há dúvida que além de pelintra és tonta! Tu, rica?... Não tens onde cair morta! E queres ainda o meu Zé! Desengana-te... Ele não é para o teu dente! 
Maria Clara teve um acesso de raiva. 
— Serei rica, sim, senhora! Mas se quiser pode levar também o seu sobrinho! 
A mulher mostrou-se quase alarmada. 
— Que vento te passou pela cabeça? Quem te meteu essa ideia nos miolos?
— Foi a princesa moura do penedo! 
E voltando costas à mulher, que a olhava agora com espanto e medo, Maria Clara continuou correndo. Chegada a casa, tirou o fermento, e voltou, sempre correndo, a subir a serra. 
Nesse tempo, porém, já outras mulheres a quem a velha tia do Zé Quintão pusera ao corrente do que se passara, seguiam no rasto daquela a quem chamavam a Flor dos Montes. 
Quase sem poder respirar — tão grande era o cansaço — a rapariga nem reparou no gado que voltava sozinho ao redil. Esgazeada, olhou o penedo já quase sem luz. A princesa não estava lá! Buscou em volta, numa muda interrogação. Então, ouviu as vozes das mulheres e do rapazio, que começavam a subir a serra, no seu encalço. A verdade, ou antes, a realidade surgiu-lhe de repente: ela faltara à promessa que havia feito à moura! A vaidade falara nela mais alto que o desejo de cumprir a palavra dada! A princesa desaparecera. E ela teria de quedar-se pobre como era, e ainda cheia de vergonha da sua soberba! 
Vendo-a nessa expressão de atarantada e vencida, a risota foi geral. Então, alucinada, Maria Clara voltou a descer o monte, correndo em direção a casa.
A tarde morna fazia do crepúsculo mais um véu de tristeza para calar alegrias. No seu leito de enferma, Maria Clara olhava um ponto fixo no teto. Não falava, não dormia, não queria comer. Junto dela, a mãe chorava em silêncio. As vizinhas deixaram de a visitar. O próprio Zé Quintão não aparecia. E os dias iam passando... E Maria Clara ia mirrando, mirrando... 
Nessa tarde, porém, algo aconteceu. Vinda do exterior, uma voz chamou: 
— Flor dos Montes! 
Maria Clara ouviu. Os seus olhos abriram-se mais. A mãe dela, a seu lado, começou a chorar. 
A voz tornou: 
— Flor dos Montes! 
A mãe da rapariga exclamou, num raio de esperança: 
— Louvado seja Deus! É o Zé Quintão! 
E foi abrir a porta. O rapaz entrou. 
Comovido, beijou a testa, os olhos de Maria Clara. O peito dela arfava, demonstrando a emoção que estava a sentir. Mas continuava muda e queda. Zé Quintão voltou a falar-lhe: 
— Maria Clara! Tu és a Flor dos Montes. Mas as flores, quando murcham, morrem... E tu tens de viver! O senhor Prior está à nossa espera no domingo. 
Houve um pequeno silêncio. A expressão parada de Flor dos Montes animou-se. Fechou os olhos. E as lágrimas começaram a rolar, inundando-lhe o rosto. 
A mãe voltou a exclamar: 
— Deus seja louvado! 
Zé Quintão insistiu: 
— Tens de pôr-te boa! Só faltam três dias! 
Então Maria Clara soergueu-se no leito. Pela primeira vez a sua voz enchia a casa, desde a malfadada tarde em que descera do monte, correndo. 
— Zé... tu falaste-lhe?... Tu queres... ainda… casar comigo? 
Ele fingiu naturalidade: 
— E por que não? Não era isso o combinado? 
— Era... mas... 
— Mas tens de prometer-me que nunca mais irás sozinha lá a cima, ao penedo! 
Fechando os olhos, como a dissipar recordações, ela murmurou quase em surdina: 
— Prometo!... Nunca mais! Nunca mais! 
Zé Quintão puxou a moça de encontro ao seu peito forte. Tinha lágrimas nos olhos, que tentava encobrir. 
Espreitando do alto, o crepúsculo fez sinal à noite para que descesse depressa.

E a noite encontrou já os dois namorados abraçados e felizes!

Cookie Policy

This site uses cookies. When browsing the site, you are consenting its use. Learn more

I understood