Lenda do Rio Lima


Era uma vez um rio.

Nascera, sem pressa, entre espessas penhas, uma serra galega, e, sem pressa, foi descendo um vale ameno, bordado de salgueiros e veigas viridentes, avistado, débil pela distância, dos altos montes revestidos de pinheirais, e onde, nos cimos, se abrigavam o refúgio e agressividade de velhos castros.

Era azul e liso.

Não tinha nome ainda.

O povo que lhe usava as águas, para a rega, a pesca e a sede, era rude, selvagem, mal sabendo talhar na pedra o machado da lenha; a faca lascada para dilacerar a rês, destinada ao fulgor das brasas; a ponta de lança para a defesa e o ataque contra a violência que lhe roubava o gado e lhe raptava a mulher.

Pela calma do entardecer, a tingir de vermelho os céus do mar próximo, o pastor, recoberto de peles de fera, conduzia os rebanhos até às areias finas das margens, a beberem frescura na limpidez do rio, longa, longamente...

Mas esta paz de paraíso não tardou a ser perturbada pelo passo duro e cadenciado do soldado estranho.

A Roma imperial enviara as suas legiões aos campos agrestes da Ibéria, vencendo batalhas, edificando estradas lajeadas, as pontes, os aquedutos, as muralhas guerreiras, os templos para os deuses, os anfiteatros e as arenas para os prazeres da arte e do desporto.

Elas invadiam, implacáveis, o bucolismo da paisagem doce, empunhando a agudeza da lança e o escudo de coiro lavrado, entre o ruído dos pesados carroções e o tropear febril dos cavalos.

E, um dia, eis que o arreganho destas legiões chega junto à margem sul do rio, com seus pendões rubros, constelados de águias, sacudidos por uma brisa mansa.

E, estaca, rendido, deslumbrado!

No arrebatamento da visão, toda a soldadesca excitada supõe estar diante daquele rio Lethes, o Rio do Esquecimento, um rio sem par de que lhe falavam as lendas e as narrativas do seu país.

E do Esquecimento, porquê?

Porque se dizia que quem ousasse atravessá‐lo, enfeitiçado pela sua beleza, logo esqueceria a pátria, a família, o próprio nome.

Tomado de pavor pelos avisos desta condenação, todo o exército se recusou a mergulhar, naquelas águas encantadas, a poeira das sandálias, obrigadas a calcar o vau da passagem que o levaria sem perigo à margem oposta.

Em vão os comandantes lhe davam ordem de avançar.

Em vão o chefe supremo, Décio Júnio Bruto, lhe ameaçou a desobediência com a prisão e a morte.

Ninguém se movia dali, paralisado pela emoção e pelo medo.

Mas Décio Júnio Bruto teve uma decisão feliz.

Apeando‐se do seu ginete, atravessou, lento, as águas feiticeiras, com o escudo a proteger-lhe a cabeça, a curta espada desembainhada na firmeza da mão.

E, mal atingiu o areal da margem direita, vencendo o rumorejar do arvoredo, o gorjeio mavioso dos rouxinóis, começou a bradar pelos seus homens, hirtos, perfilados à sua frente, como estátuas estáticas, proferindo, de cada um deles, o nome exato, sem revelar esforço de memória.

Só desta forma convenceu os seus soldados que, afinal, o rio que lhes corria aos pés não era o Lethes do esquecimento, apesar da sua beleza, apesar do seu fascínio.

Então, todo o exército atravessou, sem hesitar, as águas claras e brandas, e seguiu para novas paisagens, novos montes e vales, novos rios, embora nenhum deles tão deslumbrante.

E aquele rio que, por um momento de paixão e de temor, fora batizado de Lethes, continuou a correr, sem pressa, até ao desenlace da foz.

O rio tem, hoje, o nome de Lima.

E, tal como outrora, ei‐lo que fascina, pela sua beleza, quem dele se abeira, lhe escuta o leve fluir, já ladeado, agora, pela riqueza e nobreza das igrejas e santuários milagreiros; pelos escuros solares armoriados e a brancura alegre dos casais; pelo bulício de antigas povoações com suas elegantes pontes arqueadas sobre barcos pesqueiros; e, por todo o horizonte, as torres, os pelourinhos, as cruzes...

Rio do Esquecimento?

Não.

Rio da Lembrança.

Lembrança viva destas terras amoráveis, por onde desliza e que parece beijar.

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