Lenda do Galgo Preto


Era uma vez um jovem e donairoso fidalgo, chamado D. Rui de Mendonça, muito estimado na Corte e em todas as poderosas famílias do Reino.

El-Rei D. Manuel, o Venturoso, tinha-o por valido, sempre pronto a escutar-lhe a graça espirituosa dos ditos e a inteligência dos conceitos.

E, quando o soberano decidiu ir de romagem ao túmulo do apóstolo Santiago, na galega Compostela, incluiu-o na comitiva, para desfrutar da sua presença gentil.

O caminho escolhido por El-Rei para essa piedosa peregrinação atravessava Ponte de Lima, vila nobre e muito bela, debruçada sobre as águas preguiçosas do Lima.

D. Manuel tinha, ali, alguns cavaleiros da sua Casa, senhores de vastas terras e antigos solares.

Resolveu, por isso, aproveitar a hospitalidade de um deles para repousar, alguns dias, da fadiga da viagem.

D. Rui seguiu-lhe o exemplo, visitando a parentela, pois, esta, espalhava-se, numerosa, pelos quatro cantos de Portugal.

E toda ela lhe proporcionara festas, caçadas, passeios de barco pela limpidez serena do rio.

Numa dessas festas, D. Rui travou conhecimento com D. Beatriz de Lima, descendente, pela mãe, de uma moira de Arzila, que recebera o nome de Madalena na pia batismal.

Por causa desta ascendência pagã, as velhas casas armoriadas da região recusavam-se a receber D. Beatriz com assídua intimidade, fazendo que ela, tão bonita e tão abastada, ainda permanecesse solteira.

De mais a mais, murmurava-se que a mãe de Madalena era uma espécie de bruxa, dada a feitiços e encantamentos, e culpavam-na, até, de haver conseguido, mercê de mágicos filtros de amor, forçar o cavaleiro cristão a receber a filha por esposa, apesar das diferenças de raça e religião.

Todavia, todos estes rumores desfavoráveis não impediram D. Rui de se enamorar de D. Beatriz, preso o coração pelos seus olhos profundos e cheios de sortilégio; pelos seus cabelos compridos, negros e sedosos, atributos sedutores das mulheres da Moirama.

E ambos os jovens, nas escassas horas em que conviviam, não cessavam de trocar palavras ardentes e apaixonadas, bem como projetos de um futuro feliz.

Terminando El-Rei o seu descanso, preparou-se para prosseguir o penoso caminho até Compostela. D. Rui teve que se lhe juntar ao séquito, embora com dorido pesar do seu coração enamorado. Com os olhos cintilantes de lágrimas, os dois jovens despediram-se, junto às margens enluaradas do Lima.

Então, D. Beatriz pediu a D. Rui que, naquele último encontro, lhe jurasse amor eterno.

- Juro!

Confirmou D. Rui.

- E és capaz de jurar por estas águas correntes?

Perguntou D. Beatriz.

- Juro! Amar-te-ei até que estas águas se esgotem para sempre.

Tornou-lhe D. Rui, enquanto beijava, soluçante, a mão morena de D. Beatriz, com o peito já magoado de saudade.

No dia seguinte à solenidade desta jura, D. Manuel abandonou Ponte de Lima com o brilho dos seus cavaleiros e equipagens. E ainda não havia decorrido um ano, soube-se, por todo o Reino, que D. Rui de Mendonça iria consorciar-se com uma dama da Corte, herdeira de um dos nomes mais distintos da nossa nobreza.

Mas, a esta notícia, que tanta satisfação causou aos amigos e parentes do moço-fidalgo, logo outra se seguiu, espantosa e trágica.

No dia da boda, D. Rui, ao entrar para a carruagem que o conduziria à igreja, levou, subitamente, a mão ao peito e, com um grito desesperado de dor, caiu morto!

Logo no dia seguinte a esta morte misteriosa, que enlutou o Reino, começou a aparecer, espojando-se nas areias finas que ladeiam o Lima, um enorme galgo preto.

De espaços a espaços, aquele animal desconhecido vai dessedentar-se nas águas plácidas do rio. E, se alguém procurar aproximar-se-lhe, o galgo preto corre à desfilada, ergue-se nos ares e esfuma-se para as bandas do mar.

Afirma-se, na vila aterrorizada, que tal aparição é a alma do perjuro D. Rui de Mendonça, condenado, pela vingança de D. Beatriz, a passar duro castigo, até que o Lima cesse o seu percurso líquido e brando.

Até para todo o sempre!

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