A Capa, a Capela e o Mosteiro de S. Martinho


Era uma vez um menino, nascido há muito, muito tempo. Foi por volta do longínquo ano de 316, numa região onde agora se situa um país chamado Hungria.

Seu pai era militar das poderosas legiões do império romano, que dominavam quase todo o mundo, e sonhava para o filho um futuro de glórias e de vitórias guerreiras. Chama-lhe, por isso Martinho, em homenagem a Marte, deus da guerra e protetor dos soldados.

O menino cresce. E, por volta dos dez anos, já mostra muito mais interesse pela doutrina de Jesus Cristo do que pela carreira das armas que seu pai não se cansa de o incentivar a seguir. Por sua própria iniciativa, começa, então, a preparar-se, cuidadosamente, para receber o batismo. Tem dez anos e quer ser cristão! Mas seu pai não gosta mesmo nada da ideia...

Martinho continua a crescer... Já tem quinze anos! O pai insiste em que siga a carreira das armas, na esperança de que, assim, o veria livre das influências cristãs. E Martinho vai mesmo para o exército, faz o juramento militar e serve Roma, no tempo dos imperadores Constâncio e Juliano.

É, agora, um jovem militar e participa em campanhas... Está na província romana da Gália, a que corresponde a atual França. Um dia, à entrada da cidade de Amiens, Martinho é surpreendido por uma violenta tempestade. O céu começa a ser cortado por relâmpagos aterradores e trovões medonhos fazem tremer o caminho por onde galopa. A chuva cai com violência e um vento gélido de Novembro corta-lhe o rosto enérgico do jovem.

De repente, seu olhar cruza-se com um pobre mendigo, ignorado na berma do caminho. Pede esmola, trémulo de frio. Martinho sente a sua alma pulsar de emoção. Naquele homem miserável, descobre, por instantes, um irmão, o próprio rosto de Cristo...

Martinho quer ajudá-lo. Procura nos bolsos uma moeda, mas nos bolsos não encontra nada.

- Que hei-de fazer para ajudar este homem? - pensa o jovem cavaleiro, enquanto o observa mais de perto, pálido de frio e de fome.

É, então, que lhe ocorre uma ideia: toma a sua capa de militar, puxa pela espada e, num ápice, corta-a ao meio e oferece metade ao pobre homem.

Logo desaparece a galope, agasalhado apenas pela outra metade. Mas nem essa lhe é de grande utilidade... Conta a lenda que depressa a tempestade deu lugar a um sol esplendoroso e a uma brisa amena. Aquele invernoso dia transformara-se num inesperado verão. O verão que Martinho bem merecia com aquele seu gesto de fraternal solidariedade. Era o dia 11 de novembro.O dia de (S.) Martinho...

Por volta dos dezoito anos, concretiza o seu grande sonho e recebe o tão desejado batismo, por ocasião da Páscoa, como era costume nos primeiros séculos do cristianismo. Alguns anos mais tarde, é chamado pelo imperador para receber a uma condecoração. Martinho, porem, recusa e faz um pedido. Pede licença para se retirar do exército:

-Até agora, manejei as armas por ti; permite-me que, daqui por diante, as maneje por Deus.

E assim foi! Apresenta-se ao bispo Hilário, da cidade francesa de Poitiers, que, passado algum tempo, o ordena sacerdote. Mais tarde torna-se contra sua vontade, bispo de Tours, onde funda um notável mosteiro que se transforma na sua residência e num grande centro de evangelização e de irradiação cultural.

Martinho não pára. No seu íntimo arde um incontrolável entusiasmo apostólico que o leva a manter-se sempre ativo e a não se poupar a viagens pastorais. Até que adoece, gravemente, durante uma deslocação a Candes, onde desejava serenar rivalidades e espalhar a paz de Cristo. Já é octogenário e reza:

-Meu Deus, liberta-me da prisão deste corpo leva- me para junto de ti!

Mas os seus acompanhantes e colaboradores, preocupados, reclama, precisamente, o contrário:

-Porque desejas deixa-nos? Martinho, fica connosco, por mais tempo!

Então, segundo relata Sulpício Severo, seu amigo confidente e biografo, Martinho muda sua oração para a forma condicional:

-Senhor! se ainda sou necessário ao povo de Deus, não recuso o trabalho; faça-se a Tua vontade!

Acaba por entregar a sua alma ao criador, em novembro de 397. Contava oitenta e um anos de idade e, entre todos os que o conheciam, tinha fama de santidade...

A fé do povo logo o canoniza e a sua vida e o seu culto espalham-se por todo o império, depressa chegando aos confins ocidentais da Península hispânica.

Por estas alturas, já a metade da capa militar de Martinho, conhecida pelo diminutivo cappella era conservada e venerada como relíquia, num lugar devidamente preparado.

O lugar passa a ser designado pelo nome da relíquia que guarda. E novas capelas começam a surgir, para guardar outras relíquias, tornando-se, também, lugares de culto, como as igrejas.

E Martinho nunca mais é esquecido...

É o militar que divide o seu agasalho com um mendigo, em que vê o rosto de Cristo. E assim nos conquista, todos os anos, um verão de S. Martinho, no outonal 11 de Novembro, para, em festa, celebrarmos, com castanhas e vinho, o magusto da partilha alegre e do convívio solidário.

É o Santo, com enorme devoção entre os cristãos. O Santo que oferece o nome a tantas capelas que, por todo o mundo, prestam homenagem à sua forma de estar na vida.

É o protetor de tantos crentes que a sua ajudam se confiam. E o padroeiro das paróquias barquenses de S. Martinho de castro, de S. Martinho de Paço Vedro de Magalhães, e de S. Martinho de Britelo.

Martinho é, afinal, o soldado e o protetor de todos nós... E não faltam razões para tanta fé!

Conta a lenda que, numa das suas viagens apostólicas, veio até à nossa terra.

Subiu ao alto do monte e ai encontrou um porto bom para descansar e para recuperar energias, depois de tão esgotante cavalgada.

Garante o povo, com especial carinho e devoção, que Martinho decidiu, então, atirar sua bengala, proferindo estas palavras:

- Aonde cair o meu cacheiro vai ser construído o meu mosteiro...

A bengala caiu num penedo, situado no monte do Crasto. Ficou conhecido por penedo de S. Martinho!

Imediatamente apareceu na rocha o desenho da bengala; e umas escadinhas; e uma pia; e as patas do cavalo do Martinho! Pois claro, a tradição recorda que era aí, nessa pia, que o seu cavalo ia beber...

Um pouquinho mais abaixo, ergue-se o mosteiro de S. Martinho de Crasto.

A versão dos historiadores é menos maravilhosa. Dizem eles que a origem do templo deverá remontar ao século XI, tendo sofrido uma intervenção de fundo, no século seguinte, da qual resultou um novo edifício. Foi esta igreja paroquial que, entretanto, foi transformada em mosteiro da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, graças à benemérita ação de Ourigo Soeiro (ou Soares) e, certamente, à influencia do próprio arcebispo de Braga, D. João Peculiar.

Tudo aponta para o facto de o fundador do mosteiro ser da família dos Ourigues da Nóbrega, talvez o pai de Ourigo Ourigues, o velho. E foi esse mesmo fundador que, em 1142, doou ao mosteiro os bens e rendimentos que possuía em Crasto, garantindo-lhe uma vida desafogada, ao mesmo tempo que renunciava a todo o direito que tinha na dita igreja, como fundador e padroeiro.

Mais tarde, em 1190, alguns dos seus descendentes professam no mosteiro e fazem-lhe doação das igrejas que possuíam. Deste modo, o senhorio vê consideravelmente aumentados os seus bens, com a posse de mais de cinco igrejas: Santo Adrião de Oleiros, S. Romão de Nogueira, Santa Eulália de Ruivos, S. Miguel de Boivães e Santiago de Sampriz.

Segundo as inquirições de 1220, os bens do mosteiro já se alargavam, nesta altura, muito para além da terra da Nóbrega. Estendiam-se aos julgados de Bouro, Penela, Neiva e Aguiar. E aparece ate referenciada a existência, em Santo Emilião de Mariz (Barcelos), da obrigação de pagar ao mosteiro uma renda em géneros.

A tudo isto vão-se somando diversas doações de particulares, quase sempre com a finalidade de constituir legados pios. Entre elas, avultam as de D. Estevão Anes, chanceler de Dom Afonso III, e figura preponderante do seu governo.

Não admira, portanto, que, pelo século XIII, o mosteiro de S. Martinho de Crasto já se apresentasse como o maior proprietário eclesiástico da Terra da Nóbrega e como um médio senhorio da arquidiocese de Braga.

Mais tarde, começam a surgir as dificuldades. A família fundadora ascende ao topo da escala social do país e não resiste à atração da corte. É aí que o Ourigues mais famoso e mais poderoso do século XIII se encontra. E ao lado do rei Dom Afonso III, o Bolonhês, que D. João Peres de Aboim é protagonista.

O mosteiro está longe, muito longe do centro do poder e da proteção dos poderosos da época. E não vai escapar às mudanças dos tempos. Dom Afonso V faz mercê dele a D. Gomes da Rocha, que foi prior-mor comendatário de Santa Maria de Refojos do Lima, Santa Maria de Muía e castro.

No século XVI, acaba mesmo por entrar no rol das comendas leigas. É, aliás, o primeiro, na região de Entre Douro e Minho, de que se tomou posse com tal fim. Corria o ano de 1515!

Em 1564, é anexado a Santa Cruz de Coimbra e, no reinado de Dom José, seus cónegos são transferidos para Mafra. Ainda regressam a S. Martinho de Crasto, no tempo de Dona Maria I, mas, poucos anos mais tarde, em 1834, tudo acaba com a promulgação pelo ministro da justiça do decreto de extinção das ordens e congregações religiosas.

O Mata-Frades consegue dar cabo da comunidade religiosa. Não consegue, no entanto, apagar ou reescrever a Historia. Nem destruir o mosteiro de S. Martinho de Crasto.

Indiferente às vicissitudes dos tempos, esse continua a ser um testemunho notável de tantos séculos de Histórias. E uma presença do românico na Ribeira Lima...

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