Lenda do Monge e o Passarinho


Estava um monge no coro da capela do mosteiro de Ganfei a rezar as matinas com os outros religiosos, quando chegou àquela parte do salmo onde se diz que «mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem que já passou.

Admirou-se o homem com aquela frase que não compreendia e começou a dar voltas à cabeça para descobrir como poderia aquilo ser. E, como era seu costume acabadas as matinas, ficou a rezar no coro. Naquele dia pediu, com todo o ardor, a Nosso Senhor que, se fosse de Sua vontade, lhe desse a conhecer a explicação daquelas palavras. E para ali ficou no coro, esquecido de tudo, surdo aos ruídos e distraído do que não fosse aquela frase ressoando lenta e compassada dentro do seu cérebro. O frio gélido da madrugada passava sem o trespassar e ele ali, ajoelhado e esquecido. Subitamente, entrou no coro um passarinho. Do fundo do seu adormecimento, o monge começou a ouvir um canto suavíssimo que lhe baniu do cérebro as palavras do versículo e tomou conta de si, inteiro. Pousado no banco do coro o passarinho cantava; ajoelhado no chão carcomido pelos anos o monge ouvia. E o passarinho levantou voo, rodopiou frente ao monge como que a chamá-lo e saiu do coro levando o homem atrás, como se um elo invisível os ligasse. Atravessaram corredores no silêncio da madrugada até que, já no exterior, o passarinho parou sobre uma árvore do bosque fronteiro ao convento. O servo de Deus, insensivelmente, pôs-se debaixo da árvore a ouvir aquele cântico tão suave.

Dali a breves instantes, como pareceu ao monge, o passarinho levantou voo e desapareceu.

Esperou. Como viu que a ave não voltava, encaminhou lentamente os seus passos para o mosteiro, com uma enorme pena de ter durado tão pouco aquele momento inesquecível. Mas o sol já estava a pé e era necessário retomar as obrigações diárias da comunidade…

Chegou ao convento e achou estranho encontrar tapada a porta por onde saíra de madrugada.

Um pouco adiante encontrou outra, aberta de novo, e ia entrar quando um irmão porteiro, desconhecido, lhe perguntou, ao mesmo tempo que barrava a passagem:

- Quem sois, irmão? Que buscais?

- Eu sou o sacristão. Ainda há pouco daqui saí, depois das matinas.

E reparando que o outro o olhava com ar estranho, acrescentou baixinho:

- Porque estará tudo tão mudado?!

O porteiro, sempre na sua frente, quis saber mais e perguntou os nomes do abade, do prior, do procurador. Sem entender, o bom do monge nomeou-os a todos, enquanto o outro ia abanando a cabeça. Não, não conhecia nenhum daqueles nomes! E o sacristão, espantado com tudo aquilo, sentindo-se muito fatigado, pediu que o levasse ao abade, que tudo esclareceria.

Frente ao abade, cresceu a estupefação do monge, que, confuso e maravilhado, não o reconheceu, nem ele a si. Sem saber que mais dizer, o nosso homem sentou-se num banco e apoiou a cabeça nas mãos, tentando descobrir o que se passava consigo. O abade, iluminado por Deus, mandou que lhe trouxessem os anais e história da Ordem. Procurou nos velhos alfarrábios os nomes que aquele monge apontava e, depois de muito folhear, encontrou-os: tinham vivido ali há trezentos anos!

Era muito estranho tudo aquilo! O abade olhou o homem que ali estava sentado na sua frente, longa barba branca, corpo de velho alquebrado. Considerou o que havia de dizer-lhe, como explicar aquele facto insólito, e optou por saber do velho o que se passara.

Ele, então, contou o que lhe havia sucedido.

Só então o abade compreendeu como eram misteriosos os desígnios de Deus.

O monge, tomou consciência do que se passara consigo. Louvou a Deus pela maravilha que operara e agradeceu-lhe a compreensão das palavras do salmo. Sentia ter vivido de mais, ainda que a sua longa vida tivesse parecido curta e, agora, cansado, queria juntar-se aos velhos companheiros.

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