Lenda da Mal Degolada


Era uma vez um jovem fidalgo chamado D. Rui Mendes, nascido nas terras portuguesas de Entre-Douro-e-Minho, com solar e torre defensiva em Santo António da Facha, perto das águas remansadas do rio Lima.

Valente guerreiro, ajudara o seu rei a levar de vencida, até ao sul, as hostes sarracenas; bom caçador, cravava com destreza o ferro agudo da sua lança no dorso impetuoso do javali; trovador inspirado, alegrava os serões invernosos dos solares vizinhos, com o lirismo dos seus versos, suspirosos de saudade e de amor; diligente proprietário, tratava, com justiça e carinho, os servos da gleba e os pobres das choças, a quem provia de alimentos e agasalho.

Além disso, era belo e de gentil figura, cobiçado para casamento pelas filhas solteiras da sua rica e numerosa parentela.

Mas, de repente, o povo e os seus amigos deixaram de o ver, de escutar o galope fogoso de seu cavalo, a tropear sobre os lajedos duros e a poeira dos caminhos. Que seria feito do D. Rui?

O moço cavaleiro limiano, tão estimado e envejado, vivia, agora, escondido na espessura rudeza da sua torre de granito, adoçada pelo verde tenro das heras. Mas não vivia só.

Com ele, habitava uma linda moira, Zaida, que, no maior segredo, D. Rui trouxera, cativa, das suas lutas vitoriosas contra a Moirama.

Amava-a o fidalgo em extremo.

No entanto, não era o facto de Zaida pertencer a uma raça infiel que o impedia de frequentar, com ela, as festas realizadas noutras torres e solares que se erguiam, altivos, por esses montes e vales.

Era, assim, por via de um ciúme doentio, a torturar-lhe o coração, a toldar-lhe o espírito, chegando mesmo a confessar à amada que não hesitaria em dar-lhe a morte, à mínima suspeita de infidelidade, tão violenta era a sua índole e tão ardente a sua paixão.

Porque desejava consagrar o seu amor pelo casamento, segundo os mandamentos da Santa Madre Igreja, procurou, num convento cerca dali, em Refojos, um velho frade ainda seu familiar, rogando-lhe que guiasse Zaida nos altos preceitos cristãos, ensinando-lhe a verdade da sagrada doutrina, fazendo-a abjurar das crenças da sua raça.

Ensinamentos e renúncias estes que a alma pura da moira estava já disposta a acatar com fervor.

Logo o frade acedeu, contente e comovido, a ser o professor e conselheiro de Zaida, em tão piedosa tarefa.

E D. Rui, confiante na próxima boda feliz, regressou às suas tarefas de proprietário rural, cuidando dos seus bens, das suas tulhas repletas, das suas adegas e abarrotar de tonéis bojudos, cheios de um vinho ácido e revigorante, vigiando os seus barcos de pesca, de onde saltava, bem vindo, o saboroso peixe que lhe abastecia a mesa, em tempos quaresmais, esquecendo, assim, o pedido que fizera ao frade de Refojos.

Este, porém, não o esquecera.

Em breve, pois, demandou a torre de D. Rui, para, junto de Zaida, folhear a sabedoria da Bíblia e de outros volumes místicos, onde anjos e santos comungavam a presença divina.

E em certo fim de tarde outonal, o Sol a sumir-se, lento, para as bandas do mar, já sombras cinzentas a pesarem nos arvoredos, calado já o chilreio da passarada, D. Rui regressou á torre, após um dia de fatigo trabalho, buscando o repouso merecido nos braços da sua amada.

Mas, ao penetrar no jardim que lhe circundava o solar, e onde uma fonte canora soltava, do esgar de uma carranca de pedra, um jorro fresco de água, surpreendeu dois vultos indecisos, conversando num tom baixo e íntimo.

Num deles, reconheceu a figura esbelta de Zaida.

O outro era de um homem encapotado.

Um acesso violento de ciúmes tomou posse do cavaleiro, adivinhando, naquele encontro, aparentemente secreto, uma traição vil.

Num grito selvático, correi para Zaida, desembainhando a espada e decepando, de um só golpe, aquela cabeça tão delicada!

- Que fazeis, Deus do céu?

Gritou-lhe, tomado de imenso terror, o velho frade de Refojos, pois era ele quem se encontrava junto da jovem moira, dissertando sobre os milagres de Cristo Salvador.

D. Rui, então, reconhecendo o amigo, compreendeu, desesperado, a monstruosidade do seu gesto.

O frade não esperou mais para batizar, com as límpidas águas da fonte, aquela cabeça decepada de Zaida, lançando-lhe a bênção do sinal da cruz.

D. Rui caíra de joelhos, como se um raio lhe fulminasse o coração.

E jamais se curou do seu profundo desgosto, amaldiçoando o ciúme que o levara a tal crime horrendo.

Abandonando todos os prazeres e deveres da sua casa, acabou por falecer, precocemente envelhecido e roído de remorsos.

E há quem tenha visto, desde essa tarde sangrenta, quando nasce nos céus a face cadavérica da Lua Cheia, vaguear por aqueles ermos, montada num cavalo, branco como um fantasma, a moira inocente, trazendo, aconchegada ao seio, a cabeça degolada, com os olhos abertos de espanto e pavor, e os negros e longos cabelos agitados ao vento da noite misteriosa.

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