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Lenda das Unhas do Diabo


Era uma vez um escrivão, natural de Ponte de Lima, vila muito antiga, banhada pelo rio Lima, ali atravessado por uma elegante ponte de pedra, obra dos romanos, cujas sandálias imperiais lhe pisaram as lajes, depois continuada por outros povos, já em tempos medievos.

O escrivão era odiado e temido.

Desonesto em extremo, sórdido usurário, mostrava-se sempre capaz de falsificar documentos importantes em seu proveito; de empurrar para a ruína os seus clientes; de seduzir inocências e difamar quem vivia livre de qualquer suspeita.

Um dia, o bronze dos sinos da vila começaram a dobrar, tristes e lentos.

Morrera o escrivão.

Mas, antes de fechar os olhos, quis ele comprar a consideração e o desgosto dos seus conterrâneos, fingindo-se arrependido dos seus atos condenáveis, comungando e recebendo a extrema-unção das mãos ingénuas de um sacerdote.

A falsidade desta atitude, todavia, não convenceu e comoveu ninguém.

E, nem o cangalheiro lhe forneceu o caixão, nem o coveiro se dispôs a abrir-lhe a sepultura.

Apenas os padres franciscanos do Convento de Santo António tiveram a piedade de dar-lhe um enterro cristão, recolhendo-lhe o corpo, entre círios devotos, no chão de uma das capelas da igreja, colocando-lhe, por cima, o peso de uma laje funerária.

Após a cerimónia simples, os bons dos frades regressaram à humildade das celas, para as orações e o sono.

Porém, mal soaram as badaladas da meia-noite, no relógio da torre, eis que três fortes argoladas na porta da igreja acordaram toda a comunidade.

E os frades correram, aflitos, para saberem quem lhes rogava auxílio em horas tão tardias.

Deparou-se-lhes, então, no limiar, um cavaleiro muito alto e muito magro, de olhos coruscantes, envolto numa espessa capa negra.

Confessava-se parente chegado do escrivão e vinha procurar-lhe a campa, para uma prece.

Indicaram-lhe os frades a capela e o túmulo.

Em passos ligeiros e cavos, como se, em vez de pés, possuísse os cascos escuros de um bode, o desconhecido aproximou-se do lugar onde haviam enterrado o escrivão.

Então, com uma força sobrenatural, e para pasmo dos frades, ergueu, com as duas mãos, a pedra que ocultava o caixão e arremessou-a para o centro de igreja, como se ela fosse, tão só, um leve feixe de penas!

Depois, tomou um cálice do altar da capela e, sobre ele, inclinou a boca gelada do escrivão.

Com um murro violento nas costas do defunto, obrigou-o a vomitar, sobre o cálice, intacta, a hóstia consagrada que o hipócrita havia sacrilegamente engolido antes de falecer.

O espanto dos frades aumentou em vista deste prodígio.

Mais, ainda, quando o estranho cavaleiro, em que reconheciam, persignando-se, a presença do Diabo, arrebatou o corpo inerte do escrivão e, com ele, fugiu para uma das janelas da igreja, partindo-a em mil pedaços de vidros coloridos, e sumindo-se na noite.

Sim, o desconhecido era, de facto, o Diabo em pessoa, que viera buscar, para o seu Reino das Trevas, a alma pecadora do escrivão.

Foi com extrema dificuldade que os frades levaram a laje para fora do convento, deixando-a abandonada à curiosidade e terror do povo que, nela, pode distinguir, bem nítidas, as unhas poderosas do Diabo.

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